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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Véspera - Ricardo Gondim



Véspera
Ricardo Gondim


Sobrevivente. Acho uma boa palavra para expresssar como espero o dia de amanhã, meu aniversário. Minha vida não foi marcada por grandes tragédias. Não me considero vítima de nada. Embora filho de preso político e embora temperado no gosto amargo do preconceito e da discriminação, não reclamo da sorte. Não me sinto traído pela vida mesmo quando assaltado pela lembrança de já ter caminhado pela alamenda de um cemitério e, aos prantos, enterrar a irmã caçula. Considero-me um sobrevivente. Subsisti à minha impenitente vilania, ao clima inóspito de nossa casa de frente para o sol, ao Liceu, aos fuzis dogmáticos, às taquicardias. E se feridas existenciais ainda supuram, nesta véspera de aniversário reúno coragem de dizer como doem. Estou velho demais para brincar de esconde-esconde.
Desembarco nos 57 anos mal resolvido nas relações. Ainda desespero com deserções. Agonizo com o descaso. Fico arrasado com a superficialidade do companheirismo. Admito culpa no processo: gostei de ser vitrine, aceitei adulação, deixei-me levar por admiradores duvidosos. Custei a perceber o assédio da empáfia e paguei caro. O eureka aconteceu depois de julgado, estapeado e demonizado por aqueles que me abraçavam.
Daí em diante, sem querer, comecei a duvidar da própria sombra. Somei, dividi, apliquei raiz quadrada, mas o resultado aritmético de como passei a perceber amizades, aproximou-se do mínimo. Hoje, nenhuma traição me surpreende. Considero normal os Brutus, os Judas e os Joaquim Silvério dos Reis. Nasci no tempo dos relacionamentos líquidos e não consegui adaptar-me.
No dia 14 de janeiro, abro a porta para o futuro e, junto, arrasto a mala da desilusão. As coxias eclesiásticas não me fizeram bem. O olhar piedoso de homens com colarinho clerical arrasa comigo. Os bem articulados profetas que, em nome de Deus, se mostram descontroladamente pios, me assustam. Intuo o fermento dos fariseus. Calado, acumulei decepções que acabaram alfinetando a bolha onde eu fazia flutuar os ideais. Minha afoiteza juvenil se evaporou. Dobrei as bandeiras de antigas paixões logo que notei conveniências ditando convicções, oportunismos animando iniciativas e politicagens dominando intentos.
Acerco-me da terceira idade e faço tudo para não perder a alma. Como não pretendo amofinar-me em jeremiadas lamentosas, ajusto o dial na sintonia que alimenta poetas de beleza, migro para o mundo dos grandes romancistas para multiplicar o tempo, matriculo-me na alfabetização do jazz, recupero reminiscências infantis, estudo os Atos dos Apóstolos, refaço os passos de Martin Luther King Jr, corro, abraço os netos, acolho o amor de minha mulher, telefono para o amigo distante e passo chave para transformar o quarto em catedral e o pé da cama, em altar.
Encaro os poucos anos que me restam no esforço de ser cândido nas dores, despretensioso na alegria, íntegro diante do espelho e em paz com Deus. Encho as mãos com as sementes da beirada de campos nunca joeirados, e caminho. Não sei se terei forças de espalhá-las por muito tempo, mas estou determinado a ir até o fim. 
Sigo devagar, abraçado à Graça, mais liberto de expectativas e com menos imperativos. Ancorado na certeza de que sou amado, me construo. Projeto gastar os próximos anos em aproximar-me de mim mesmo.
Soli Deo Gloria13-1-11

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