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quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Enquanto resta alguma lei neste mundo




PILATOS. Você está desrespeitando seu pai e sua mãe. Está desrespeitando a sua Igreja. Está violando os mandamentos do seu Deus, e alegando ter direito a agir assim. Está pleiteando em favor dos pobres, e declarando que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no paraíso de Deus; apesar disso você banqueteou-se na mesa dos ricos, e encorajou meretrizes a gastar em perfume para os seus pés o dinheiro que poderia ter sido dado aos pobres, deixando nisso o seu tesoureiro tão revoltado que ele o traiu ao Sumo Sacerdote por um punhado de prata. Ora, banqueteie-se o quanto quiser: não culpo você por recusar-se a fazer-se de faquir e a tornar-se exposição ambulante de austeridades tolas. Porém preciso impor um limite quando você promove tumulto no templo e arremessa o dinheiro dos cambistas para ser disperso entre os seus simpatizantes. Tenho uma lei para administrar. A lei proíbe obscenidade, sedição e blasfêmia, e você foi acusado de sedição e de blasfêmia. Você não as nega: você fala sem parar sobre a verdade, que acontece de ser apenas aquilo em que você gosta de acreditar. Sua blasfêmia não representa nada para mim: toda a religião judaica, do começo ao fim, é blasfêmia do meu ponto de vista romano; mas significa muito para o Sumo Sacerdote, e não posso manter a ordem em meio aos hebreus a não ser lidando com os tolos judeus de acordo com a tolice judaica. Já a sedição diz respeito a mim e ao meu cargo muito de perto. Quando você promete suplantar o Império Romano com um reino em que é você e não César a ocupar o trono, torna-se culpado da mais grave sedição. Sou avesso a mandar crucificá-lo; embora seja judeu, e como se não bastasse jovem e imaturo, percebo que você é à sua maneira judia um homem de qualidade. Não me sinto à vontade em atirar à multidão um homem de qualidade, mesmo que sua qualidade seja meramente judaica. Pois como aristocrata sou eu mesmo um homem de qualidade, e falcão não arranca olho de falcão. Na verdade, se condescendo em parlamentar com você tão extensamente é na misericordiosa esperança de encontrar uma desculpa para tolerar sua blasfêmia e sedição. Em sua defesa você oferece apenas uma frase vazia sobre a verdade. Sou sincero quando digo que desejo poupá-lo, porque se não libertá-lo terei de libertar aquele patife Barrabás, que foi mais longe do que você e cometeu assassinato, enquanto entendo que você só ressuscitou dos mortos um judeu. Então, pela última vez, faça seu juízo funcionar, e encontre-me uma razão sólida para deixar partir em liberdade um blasfemador sedicioso.
JESUS. Não peço que me liberte; também não aceitaria minha vida ao preço da morte de Barrabás, mesmo se acreditasse que você tem poder para revogar o suplício ao qual estou predestinado. Mas para satisfazer seu anseio pela verdade, direi que a resposta às suas questões está em seu próprio argumento de que nem você nem o prisioneiro que você está julgando são capazes de provar que têm razão; sendo assim você não deve me julgar, para não ser julgado. Sem sedição e blasfêmia o mundo permaneceria imóvel, e o reino de Deus nunca chegaria a estar um estágio mais próximo. O império romano começou com uma loba dando de mamar a duas crianças. Se essas crianças não tivessem sido mais sábias do que sua madrasta, seu império seria uma matilha de lobos. É por crianças que são mais sábias que os pais, por súditos que são mais sábios que seus imperadores e por mendigos e vagabundos que são mais sábios que seus sacerdotes que os homens alçam-se de serem animais predadores a crerem em mim e serem salvos.
PILATOS. O que você quer dizer com “crer em você”?
JESUS. Ver o mundo como eu vejo. O que mais poderia significar?
PILATOS. E você é Cristo, o Messias, certo?
JESUS. Se eu fosse Satanás meu argumento permaneceria válido.
PILATOS. Devo então poupar e encorajar todo herege, todo rebelde, todo transgressor e todo velhaco, porque ele pode acabar se mostrando mais sábio do que todas as gerações que fizeram o Direito Romano e construíram sobre ele o Império Romano?
JESUS. Pelos frutos você os reconhece. Cuidado quando você mata um pensamento que é novo pra você; esse pensamento pode ser o fundamento do reino de Deus na terra.
PILATOS. Pode ser também a ruína de todos os reinos, de toda lei, de toda sociedade humana. Pode ser o pensamento do animal predador lutando para voltar.
JESUS. Não é o animal predador que está lutando para voltar; é o reino de Deus que está lutando para vir. O império que olha para trás com terror dará lugar ao reino que olha para a frente com esperança. O terror enlouquece os homens; a esperança e a fé dão-lhes sabedoria divina. Os homens que você enche de temor não se intimidarão diante de nenhum mal e perecerão em seu pecado; os homens que encho de fé herdarão a terra. A você eu digo: expulse o medo. Pare de me dizer coisas vãs sobre a grandeza de Roma. Aquilo que você chama de grandeza de Roma não passa de medo: medo do passado e do futuro, medo dos pobres, medo dos ricos, medo dos sumos sacerdotes, medo dos judeus e gregos que são cultos, medo dos gauleses e dos godos e dos hunos que são bárbaros, medo da Cartago que vocês destruíram para salvá-los do medo que tinham dela e que agora temem mais do que nunca, medo do César imperial, o ídolo criado por vocês mesmos, e medo de mim, o vagabundo sem um tostão, espancado e ridicularizado, medo de tudo exceto o domínio de Deus: fé em coisa alguma que não seja sangue e ferro e ouro. Você, representando Roma, é o covarde universal; eu, representando o reino de Deus, enfrentei tudo, perdi tudo, e ganhei uma coroa eterna.
PILATOS. Você ganhou foi uma coroa de espinhos, e vai usá-la na cruz. Você é um sujeito mais perigoso do que eu imaginava. Com sua blasfêmia contra o deus dos sumos sacerdotes pouco me importo: no que me diz respeito você pode espezinhar a religião deles até o inferno. Mas você blasfemou contra César e contra o Império; e falou sério, e tem poder para dobrar o coração dos homens contra ele, como dobrou o meu. Devo portanto por um fim em você, enquanto resta alguma lei neste mundo.
JESUS. A lei é cega sem conselho. O conselho com que concordam os homens é vão: não passa do eco de suas próprias vozes. Um milhão de ecos não irão ajudá-lo a governar com justiça, mas quem não tem medo de você e mostra o outro lado é uma pérola do maior valor. Mate-me e você ficará cego, para sua própria condenação. O maior dos nomes de Deus é Conselheiro; quando o seu império for pó e o seu nome uma lembrança, entre as nações os templos do Deus vivo ecoarão ainda o louvor a ele como Maravilhoso! Conselheiro! O Pai da Eternidade, o Príncipe da Paz.


Bernard Shaw, no prefácio de On the rocks (1933)


sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Todas as coisas louvam ao Senhor




A CRIAÇÃO: Todas as coisas louvam ao Senhor
“Tudo que Deus criou tem valor.” Até mesmo os animais e insetos que parecem à primeira vista inúteis e nocivos tem uma vocação a cumprir. A lesma, que deixa atrás de si uma trilha pegajosa, consumindo dessa forma a sua vitalidade, serve de remédio para o furúnculo. A picada do marimbondo é curada aplicando-se à ferida uma mosca doméstica esmagada. O mosquito, débil criatura, que capta alimento mas jamais o secreta, é específico contra o veneno da víbora, e esse réptil venenoso cura por sua vez erupções, enquanto que o lagarto é o antídoto ao escorpião.
Não apenas todas as criaturas servem o homem e contribuem para o seu conforto, mas Deus também “ensina-nos através dos animais da terra, e concede-nos sabedoria através das aves do céu”. Ele concedeu a diversos animais admiráveis qualidades morais como padrão para o homem. Se a Torá não nos tivesse sido revelada poderíamos ter aprendido o cuidado para com as decências da vida com o gato, que cobre seu excremento com terra; o respeito à propriedade com as formigas, que jamais avançam sobre as reservas umas das outras; e o cuidado para com uma conduta decorosa com o galo, que quando deseja unir-se à galinha promete comprar para ela um manto longo o bastante para chegar até o chão, e quando a galinha lembra-o da promessa ele sacode sua crista e diz: “que a minha crista seja tirada de mim se eu não comprá-lo assim que tiver condições”.
O gafanhoto também tem uma lição a ensinar ao homem. Ele canta durante todo o verão, até que seu ventre se rompe e a morte o leva para si. Embora não desconheça o destino que o espera, ele permanece cantando. Da mesma forma o homem deve cumprir seu dever para com Deus, não importando as conseqüências. A cegonha deve ser adotada como modelo em dois sentidos. Ela guarda zelosamente a pureza de sua vida familiar, e para com seus semelhantes é compassiva e misericordiosa. Mesmo o sapo tem o que ensinar ao homem. Junto à água vive uma espécie de animal que subsiste apenas de criaturas aquáticas. Quando percebe que um desses está com fome o sapo vai até ele espontaneamente e oferece-se como comida, cumprindo dessa forma a prescrição: “se teu inimigo tem fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber”.
“SE TEU INIMIGO TEM FOME, DÊ-LHE DE COMER; SE TIVER SEDE, DÊ-LHE DE BEBER”.

Toda a criação foi chamada à existência por Deus para sua glória, e cada criatura tem seu próprio hino de louvor através do qual exalta o criador. O céu e a terra, o paraíso e o inferno, o deserto e os prados, rios e mares – todos têm seu modo próprio de prestar homenagem a Deus. O hino de louvor da terra é: “dos confins da terra ouvimos cantar: glória ao Justo!”. O mar exclama: “o SENHOR nas alturas é mais poderoso do que o bramido das grandes águas, do que os poderosos vagalhões do mar”.
Também os corpos celestes e os elementos proclamam o louvor de seu criador: o sol, a lua, as estrelas, as nuvens e os ventos, o relâmpago e o orvalho. O sol diz: “o sol e a lua param nas suas moradas, ao resplandecer a luz das tuas flechas sibilantes, ao fulgor do relâmpago da tua lança”; e as estrelas cantam: “só tu és Senhor, tu fizeste o céu, o céu dos céus e todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto há neles; tu os preservas a todos com vida, e o exército dos céus te adora”.
Cada planta, além disso, tem uma canção de louvor. A árvore frutífera canta: “então cantarão de alegria todas as árvores do bosque, na presença do Senhor, pois ele vem; pois vem julgar a terra”; e as espigas do campo cantam: “os campos cobrem-se de rebanhos, e os vales vestem-se de espigas; exultam de alegria e cantam”.

Notável entre os que cantam louvores são os pássaros, e dentre eles o maior é o galo. Quando Deus visita à meia-noite os piedosos no Paraíso, as árvores dali irrompem em adoração, e suas canções acordam o galo, que começa por sua vez a dar louvor. Por sete vezes ele canta, e cada uma das vezes recita um verso. O primeiro verso é: “levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória. Quem é o Rei da Glória? O Senhor, forte e poderoso, o Senhor, poderoso nas batalhas”. O segundo verso: “levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória. Quem é esse Rei da Glória? O Senhor dos Exércitos, ele é o Rei da Glória”. O terceiro: “levantai-vos, vós justos, e ocupai-vos da Torá, para que seja grande a vossa recompensa no mundo vindouro”. O quarto: “tenho aguardado pela tua salvação, ó Senhor!” O quinto: “ó preguiçoso, até quando ficarás deitado? Quando te levantarás do teu sono?” O sexto: “não ames o sono, para que não empobreças; abre os olhos e te fartarás do teu próprio pão”. E o sétimo verso cantado pelo galo diz: “já é tempo de trabalhar para o SENHOR, pois a tua lei está sendo violada”.
A canção do abutre é: “eu lhes assobiarei e os ajuntarei, porque os tenho remido; multiplicar-se-ão como antes se tinham multiplicado” – o mesmo verso com o qual o pássaro anunciará, no devido tempo, o advento do Messias. A única diferença será que quando anunciar o Messias ele cantará esse verso pousado no chão, sendo que ele o canta sempre sentado em outro lugar.
Tampouco os outros animais louvam menos do que os pássaros. Mesmo as feras predadoras entoam adoração. O leão diz: “o Senhor sairá como valente, despertará o seu zelo como homem de guerra; clamará, lançará forte grito de guerra e mostrará sua força contra os seus inimigos”. E a raposa exorta à justiça com as seguintes palavras: “ai daquele que edifica a sua casa com injustiça e os seus aposentos, sem direito! Que se vale do serviço do seu próximo, sem paga, e não lhe dá o salário”.
Sim, os peixes mudos do mar sabem proclamar o louvor de seu Senhor. “Ouve-se a voz do SENHOR sobre as águas,” dizem eles, “troveja o Deus da glória; o Senhor está sobre as muitas águas”, enquanto o sapo exclama: “bendito seja o nome da glória do seu reino, para todo o sempre”. Desprezíveis como são, mesmo os animais rastejantes dão louvor a seu criador. O camundongo exalta a Deus com as seguintes palavras: “porque tu és justo em tudo quanto tem vindo sobre nós; pois tu fielmente procedeste, e nós, perversamente”. E o gato canta: “todo ser que respira louve ao Senhor. Louvai ao Senhor!”


http://www.baciadasalmas.com/2006/todas-as-coisas-louvam-ao-senhor/
Lendas dos Judeus é uma compilação de lendas judaicas recolhidas das fontes originais do midrash(particularmente o Talmude) pelo talmudista lituano Louis Ginzberg (1873-1953). Lendas foi publicado em 6 volumes (sendo dois volumes de notas) entre 1909 e 1928.

sábado, 9 de julho de 2011

As gerações perversas



ABRAÃO: As gerações perversas

( Lendas Judaicas )

Entre Noé e Abraão houve dez gerações; isso ocorreu de modo a demonstrar a clemência de Deus, porque todas essas gerações provocaram a sua ira, até que nosso pai Abraão veio e recebeu a recompensa por todas. Foi por causa de Abraão que Deus se mostrou longânimo e paciente durante as vidas dessas dez gerações.
Não apenas isso, o próprio mundo foi criado devido aos méritos de Abraão. Seu advento foi revelado a seu ancestral Reú, que proferiu a seguinte profecia por ocasião do nascimento de seu filho Serugue: “Desta criança, na quarta geração, nascerá aquele que fará sua habitação no altíssimo; ele será chamado de perfeito e sem mácula e será pai de nações; sua aliança não será anulada, e sua descendência se multiplicará para sempre.”
Na verdade já não era sem tempo que o “amigo de Deus” aparecesse sobre a face da terra. Os descendentes de Noé estavam afundando cada vez mais na devassidão; começavam a envolver-se em disputas e assassinatos, a comer sangue, a construir cidades fortificadas e muralhas e torres, a colocar um único homem como rei sobre toda a nação, a travar guerras, povo contra povo, nação contra nação e cidade contra cidade; praticavam toda sorte de maldade, adquirindo armas e ensinando a arte da guerra a suas crianças. Começaram a fazer prisioneiros e vendê-los como escravos. Começaram a fazer para si imagens fundidas, cada um passando a adorar a imagem fundida que fizera para si, pois os espíritos malignos, sob a liderança de Mastema, desviavam-nos para o caminho do pecado e da impureza. Por essa razão Reú deu a seu filho o nome de Serugue/ramificado, porque toda a humanidade se desviara para o caminho do pecado e da transgressão. Quando Serugue atingiu a maioridade ficou demonstrado que o nome fora bem escolhido, pois ele também adorou ídolos, e quando teve ele mesmo um filho, chamado Naor, instruiu-o nas artes dos caldeus, ensinando-o a ser adivinho e praticar artes mágicas de acordo com os sinais dos céus.
Quando chegou a hora e Naor teve um filho, Mastema mandou corvos e outros pássaros para que despojassem a terra e roubassem dos homens os frutos de seu trabalho. Logo que deitavam a semente no sulco do arado, e antes que pudessem cobri-la com terra, os pássaros vinham e levavam-na da superfície do solo. Por isso Naor deu a seu filho o nome de Tera/vagabundo, porque os corvos e outros pássaros atormentavam os homens e devoravam suas sementes, reduzindo-os à miséria.
* * *
Lendas dos Judeus é uma compilação de lendas judaicas recolhidas das fontes originais do midrash(particularmente o Talmude) pelo talmudista lituano Louis Ginzberg (1873-1953). Lendas foi publicado em 6 volumes (sendo dois volumes de notas) entre 1909 e 1928.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

O verdadeiro crente



ABRAÃO: O verdadeiro crente

( Lenda judaica )

Certa vez Abraão entrou no templo dos ídolos da casa de seu pai, a fim de trazer-lhes sacrifícios, e encontrou um deles, chamado Marumate e feito de pedra lavrada, prostrado no chão diante do deus de ferro de Naor. O ídolo era pesado demais para alguém erguê-lo do chão sem ajuda, pelo que Abraão chamou seu pai para ajudar a colocar Marumate de volta no lugar. Enquanto moviam a estátua a cabeça se soltou; Tera pegou então uma pedra e lavrou com cinzel um outro Marumate, fixando a cabeça do primeiro no novo corpo que fizera. Depois continuou e fez mais cinco deuses, todos os quais entregou a Abraão, mandando que os vendesse nas ruas da cidade.
Abraão selou sua mula e foi até a hospedaria onde os mercadores de Fandana, na Síria, paravam em seu caminho para o Egito. Quando chegou à hospedaria um dos camelos que pertencia aos mercadores baliu, e o som assustou sua mula de tal forma que ela saiu correndo desabalada, quebrando três dos ídolos. «Foi ele que atirou-se ao fogo para que sua refeição pudesse ser preparada.»Os mercadores não apenas compraram os ídolos em bom estado que ele trazia, mas deram-lhe ainda dinheiro pelos quebrados, pois Abraão contou-lhes o quanto estava receoso de aparecer diante do pai com menos dinheiro do que esperava reveber pelo trabalho das suas mãos.
Esse incidente levou Abraão a refletir sobre a inutilidade dos ídolos. “O que essas coisa perversas fizeram ao meu pai?” ele disse a si mesmo. “Então ele não é o deus dos seus deuses? Não é devido ao lavor, esforço e planejamento dele que eles chegam a existir? Não seria mais apropriado que eles prestassem adoração e meu pai do que ele a eles, considerando-se que são obra das suas mãos?”
Pensando nessas coisas ele chegou à casa do pai, entrou e entregou-lhe o dinheiro pelas cinco imagens. Tera encheu-se de júbilo e disse:
– Meus deuses o abençoem, porque me trouxe o preço pelos meus ídolos, e meu trabalho não foi em vão.
Mas Abraão retrucou:
– Ouça, Tera, meu pai: são os seus deuses os abençoados pelo senhor, pois o senhor é o deus deles! O senhor os moldou; a benção deles é destruição, e seu auxílio vaidade. Eles são incapazes de ajudar a si mesmos; como poderão ajudar o senhor ou abençoar a mim?
Tera ficou furioso com Abraão, por ter proferido esse discurso contra os seus deuses. Abraão, refletindo sobre a ira do pai, deixou-o e saiu da casa, porém Tera chamou-o de volta e disse:
– Junte os cavacos de carvalho que sobraram das imagens que fiz antes de você voltar, e prepara-me o jantar.
Abraão dispôs-se prontamente a cumprir a ordem do pai, e enquanto juntava as lascas de madeira encontrou um pequeno deus entre eles, cuja testa trazia a inscrição “Deus Barisate”.
Abraão atirou os cavacos no fogo e colocou Barisate junto dele.
– Atenção, Barisate! – disse ele. – Cuide para que o fogo não apague até eu voltar. Se começar a apagar, sopre sobre as brasas e a chama será atiçada novamente.
Falando assim, foi embora. Quando voltou, Abraão encontrou Barisate caído de costas, gravemente queimado. Sorrindo, disse a si mesmo:
– É, Barisate, você não é capaz nem de manter um fogo aceso e preparar comida.
E, enquanto ele falava, o ídolo foi consumido em cinzas.
Abraão levou os pratos ao pai, que comeu e bebeu, ficou satisfeito e agradeceu a seu deus Marumate. Mas Abraão disse ao pai:
– Não agradeça Marumate, agradeça a seu deus Barisate, pois foi ele, pelo seu grande amor pelo senhor, que atirou-se no fogo para que sua refeição pudesse ser preparada.
– Onde está ele agora? – exclamou Tera.
– Converteu-se em cinza pela força do fogo – respondeu Abraão.
– Grande é o poder de Barisate! – disse Tera. – Vou fazer-me outro hoje mesmo, e amanhã ele me preparará comida.
Essas palavras de seu pai fizeram com que Abraão risse consigo mesmo, mas ao mesmo tempo sua alma entristecia-se diante da obstinação de Tera. Ele não hesitou em deixar clara sua posição sobre os ídolos:
– Pai – disse ele, – não importa qual dos dois deuses o senhor bendiga. Não há sentido no seu comportamento, pois as imagens que estão no santo templo são mais dignas de oração do que as suas. Zuqueu, deus de meu irmão Naor, é mais venerável do que Marumate, pois é feito de ouro: quando ficar velho poderá ser moldado novamente. Já quando Marumate ficar frágil ou partir-se em pedaços não poderá ser refeito, pois é de pedra. O deus Jouave, que está acima dos outros deuses ao lado de Zuqueu, é mais venerável do que Barisate, que é de madeira, pois foi malhado de prata e habilidosamente lavrado pelos homens de modo a mostrar a sua magnificência. Já o seu Barisate, antes que o senhor o moldasse em deus com seu machado, estava enraizado na terra, erguendo-se ali grande e tremendo, na glória de seus ramos e flores. Agora está seco e sua seiva esvaiu-se. De sua elevada posição Marumate caiu à terra; do esplendor reduziu-se a mesquinhez. Sua face empalideceu-se, e ele mesmo foi queimado pelo fogo e consumido até as cinzas: não existe mais. E agora o senhor diz “Vou fazer-me outro hoje mesmo, e amanhã ele me preparará comida”. Pai, o fogo é mais digno de adoração do que seus deuses de ouro e prata e madeira e pedra, porque pode consumi-los. Mas tampouco o fogo chamo de deus, porque o fogo sujeita-se à água, que o apaga. A água também não considero um deus, pois é tragada pela terra; digo que a terra é mais venerável, porque vence a água. Porém a terra também não chamo de deus, pois é ressecada pelo sol; digo que o sol é mais venerável do que a terra, porque ilumina o mundo todo com seus raios. Porém o sol também não chamo de deus, porque sua luz é obscurecida quando chega a escuridão. A lua e as estrelas não chamo ainda de deuses, porque sua luz também se extingue quando passa sua hora de brilhar. Mas ouça o que vou lhe dizer, meu pai, Tera: o Deus que criou todas as coisas, ele é o verdadeiro Deus. Ele tingiu os céus e dourou o sol, e deu esplendor à lua e também às estrelas; secou a terra de entre as muitas águas, e também colocou o senhor sobre a terra e, quanto a mim, buscou-me a despeito da confusão dos meus pensamentos.
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Lendas dos Judeus é uma compilação de lendas judaicas recolhidas das fontes originais do midrash(particularmente o Talmude) pelo talmudista lituano Louis Ginzberg (1873-1953). Lendas foi publicado em 6 volumes (sendo dois volumes de notas) entre 1909 e 1928.