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sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Os discursos da reforma



A corrupção e sede de poder queimaram a carne da igreja por séculos, porém é particularmente injusto acreditar que essas só tenham sido adequadamente denunciadas e eliminadas com a entrada em cena dos protestantes. É injusto primeiro porque reformadores a igreja sempre teve, e dentre esses Francisco de Assis talvez tenha sido o maior; segundo porque, como estamos apenas aprendendo a enxergar, os protestantes não reformaram muita coisa.
Que a igreja na primeira metade do segundo milênio sofria sob o peso de sua própria corrupção inúmeros autores católicos manifestaram muito antes de Lutero, algumas vezes com paixão indistinguível da sua. Numa carta a seu discípulo Eugênio III, que acabara de ser eleito papa, São Bernardo de Clairvaux suplicava: “Quem me dera, antes de morrer, ver a igreja como em seus primeiros dias, quando os apóstolos lançavam suas redes para apanhar não prata ou ouro, mas almas”. Na mesma época Arnaldo de Brescia (opositor feroz tanto de São Bernardo quanto de Eugênio III) convocava a igreja a renunciar a toda sorte de propriedade e de poder temporal (medida que mesmo os protestantes mais idealistas não ousaram efetivar); por essa rebelião foi enforcado e seus livros apagados para sempre na fogueira.
Esses dois exemplos devem bastar para mostrar que a reforma ansiada por católicos tanto conservadores quanto radicais deveria representar um retorno a uma singeleza que havia se perdido — uma pureza que ainda cintilava, através dos séculos, nos movimentos da igreja primitiva e no exemplo de vida do Filho do Homem. Em seu De Monarchia, Dante Alighieri expressa claramente que, para a igreja, a reforma deve necessariamente representar uma re-conformação à pessoa e à herança do Jesus dos evangelhos:
Ora, a forma da igreja nada mais é do que a vida de Cristo em palavras e atos. Pois sua vida representou a ideia e o padrão da igreja militante, em especial de seus pastores, e ainda mais especialmente de seu pastor maior, cujo dever é alimentar suas ovelhas e seus cordeiros. Ele mesmo afirmou, no evangelho de João, ao nos legar a forma de sua vida em nosso favor, “Eu dei-lhes o exemplo para que, como lhes fiz, vocês também façam”. E especificamente a Pedro, depois de ter-lhe designado o posto de pastor, disse, “Pedro, siga-me você”.
Thomas à Kempis derramou o mesmo anseio em seu convite Imitação de Cristo: “Contemple o exemplo vivo dos antigos pais nos quais resplende a verdadeira perfeição, e verá quão pouco e quase nada representa aquilo que nós mesmos fazemos. Ai de nós; que é nossa vida comparada à deles?” E ainda Savonarola: “Na igreja primitiva os cálices eram de madeira e os prelados de ouro; hoje em dia a igreja tem cálices de ouro e prelados de madeira”. Uma paixão intransigente pela reforma da igreja encontrou ainda voz em em Egidio de Viterbo, em Lefèvre, em Colet, em Contarini — isso para mencionar os mais sonoros.
Dentre os católicos que denunciaram os vícios e propuseram uma radical purificação da sua igreja, um dos mais articulados, consistentes e contundentes foi o humanista e clérigo secular Erasmo de Roterdã — contemporâneo, correspondente e finalmente antagonista de Martinho Lutero.
Uma celebridade já no seu tempo, Erasmo abundava da sofisticação, da erudição e da gentileza que faltaram em todos os momentos ao Reformador. Os dois, no entanto, guardavam em comum (e por algum tempo cultivaram em comum) o anseio pela restauração da cristandade à escandalosa forma inaugurada pelo Deus encarnado.
Em obras menos satíricas do que o Elogio da Loucura, pelo qual seria lembrado (mas também neste), Erasmo sem rodeios denunciava a corrupção moral e sexual dos padres, condenava as indulgências, zombava do culto aos santos e acusava o próprio papa de defender “com espada e veneno” o poder que o clero adquirira com simonia.
Um único trecho do seu Sileni Alcibiadis será suficiente para estabelecer o tom e a profundidade das suas críticas:
O que dirão os inimigos de Cristo quando virem o Cristo dos evangelhos convocando os homens a desprezarem as riquezas, a renunciarem à busca dos prazeres e a abandonarem o orgulho, e observarem que exatamente o oposto acontece entre os líderes dos que se professam cristãos, que vivem como que de modo a superarem os pagãos em seu paganismo — em sua paixão pelo acúmulo de riquezas, seu amor aos prazeres, sua vida suntuosa, sua selvageria na guerra e praticamente todos os outros vícios? Quanto não rirão quando virem que o Cristo dos evangelhos não queria ver seus seguidores assinalados pela sua vestimenta, por rituais ou por regras alimentares, mas em que fossem unidos em seu amor uns pelos outros — quando olharem ao redor e nos virem longe de estarmos unidos, e que de fato nenhuma outra estirpe de homens viveu em discórdia tão vergonhosa e mortal? Príncipe guerreia contra príncipe, estado luta contra estado, não há acordo entre uma escola e outra ou entre uma religião (como agora se diz) e outra; rixas, facções e litígios abundam entre nós. Esta é a verdadeira blasfêmia, e seus autores são os que encontram para ela uma justa causa.
Eles chamam de heresia quando alguém diz ou escreve algo que discorda, mesmo que no menor detalhe de gramática, dos pronunciamentos mais triviais tão caros aos mestres de teologia; porém não é julgado herege quem louva como parte principal da felicidade humana aquilo que o próprio Cristo nos ensinou a desprezar; quem introduz um modo de vida completamente alheio ao ensino dos evangelhos e aos princípios dos apóstolos; quem, contrariamente ao ensino de Cristo, arma os apóstolos, ao serem enviados para pregar o evangelho, não com a espada do Espírito, que pode sozinha, pela eliminação de todas as paixões terrenas, tornar a espada desnecessária, mas com o aço com o qual possam defender-se da perseguição; que os sobrecarrega com uma bolsa na qual possam carregar dinheiro, sem dúvida para que nunca lhes falte nada — e quem assim o ensina é citado entre os maiores dos teólogos.
Em textos como esse1 Erasmo permanece milhas acima daquelas exasperações de Luteroque Pelayo descreveu como “furores de taberna”. Porém, se são distintos em tom, os dois não diferem em ênfase. Os vícios e as soluções que enxergam são, num primeiro momento, precisamente as mesmas.
Aquilo em que diferem tremendamente e para sempre é que Erasmo permaneceu católico até o fim de seus dias — implorando até o final que Lutero renunciasse ao seu projeto de rompimento, argumentando pelo testemunho de Cristo que a verdade não pode ser sediciosa, ao mesmo tempo em que requeria para si o os terríveis direito e privilégio de pedir e buscar a reforma do lado de dentro do edifício cuja ruína denunciava.
Como se sabe, Lutero não lhe deu ouvidos. Sua intransigência e sua paixão — seu projeto — requeriam um rompimento, e o rompimento requeria um novo discurso que ele não tardou a encontrar, articular e oferecer.
Este não é o lugar para se analisar em detalhe o discurso da Reforma como embalado por Lutero e refinado por Calvino. É no entanto necessário salientar, conforme Pelayo, que o deslocamento concebido pelos reformadores introduziu menos uma nova teologia do que uma nova antropologia. Desde o primeiro momento católicos e protestantes discordaram menos sobre a obra de Cristo do que sobre a condição do homem.
Em relação à tradicional (e ambivalente) posição católica, os reformadores acharam por bem rebaixar ao máximo a condição humana. Para que Deus se mostrasse maior a graça tinha de ser irresistível, e para que a graça fosse irresistível a depravação tinha de ser completa.
Jesus recordou com o verso de um salmo que os homens são indistinguíveis de deuses; os reformadores negaram que restasse no barro qualquer semelhança rastreável com o modelo.
Era necessário que aproximar-se de Deus ou imitá-lo (ou desejar imitá-lo) fosse humanamente inconcebível, pelo que os reformadores ocuparam-se de cancelar as virtudes de todas as gerações dos homens. Calvino explicou que literalmente tudo que o homem faz é pecado, e Melanchton esclareceu que para que a ortodoxia permaneça correta as virtudes dos antigos devem ser consideradas vícios.
Os católicos, quando se ocupavam desses assuntos, em geral supunham que mesmo aos antigos pagãos fora concedido enxergar ou antever alguma luz (a Divina Comédia ao mesmo tempo elabora essa tese e exemplifica a sua popularidade). Criam que a salvação fosse uma obra conjunta entre Deus e os homens, mais ou menos como esboçado no vigésimo verso do terceiro capítulo do Apocalipse. Insistiam que Deus era maior que a Queda, pelo que no mais miserável e corrompido dos seres humanos cintilava ainda alguma dignidade, um traço daquelas “imagem e semelhança” que nos foram impressas no primeiro ato criativo. Em suma, intuíam que Deus era grande o bastante para ter conferido liberdade menos que nominal ao homem.
Todas essas ressalvas foram eliminadas pelos reformadores, para os quais a depravação humana é irrestrita e o livre-arbítrio não existe. O homem é incapaz de reconhecer o bem, de desejar o bem e de escolhê-lo, pelo que somente a predestinação e a graça irresistíveis são eficazes para inocular-lhe a salvação2.
Toda a diferença talvez esteja aqui: para os católicos, os méritos de Cristo requeriam aplicação na vida diária; para os protestantes, seus méritos permaneciam coisa pertinente ao exterior da experiência e do coração (conforme a Confissão de Habsburgo: “toda a nossa justiça reside fora de nós mesmos”). A primeira posição produziu São Francisco e a pobreza voluntária; a segunda gerou o calvinismo e o capitalismo.
Nenhuma dessas tecnicalidades provavelmente interessava aos príncipes que patrocinaram a Divisão. Esses consideraram uma única coisa: que para completar o seu poder absoluto só lhes faltava o eclesiástico. Nada lhes agradava mais do que a possibilidade de se verem livres da influência de Roma e do peso das boas obras, e Lutero conferia-lhes esse duplo privilégio com seu novo discurso.
A História não ignora que Lutero e Calvino tornaram-se, quase que instantaneamente, culpados de tudo de que acusavam a igreja que rejeitaram. Resvalaram na tirania, presumiram a própria infalibilidade, aliaram-se aos poderes deste mundo, endossaram guerras, perseguiram seus antagonistas, venderam méritos, assinaram execuções e lançaram as bases de uma nova e formidável idolatria — porém estavam agora protegidos pela couraça exterior dos méritos de Cristo, e eram os primeiros a reconhecer que sua justiça residia fora deles mesmos.
Em retrospecto, era inevitável que se tornassem a imagem exata daquilo que condenavam. Porém haviam, sem perceber, introduzido indignidade maior e mais prenhe de consequências.

continua

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