por Isabella Passos
Diante de algum conflito moral alguém sempre lança mão da afirmativa ‘Deus é amor’ no intuito de apaziguar algum desconforto ou mesmo dar uma resposta ao conflito que pareça indissolúvel por outros termos. ‘Deus é amor’ virou um mantra para nossa geração e tudo que parece ser feito em amor toma logo uma roupagem de divinamente inspirado ou divinamente tolerado.
Mas claro que Deus é amor! Apesar de muitas vezes Ele ter sido tomado na cultura como alguém distante e indiferente ao permitir a banalização do mal ao longo da história, a Bíblia é repleta de demonstrações não só dos traços amorosos de Deus, mas também da riqueza da operação desse amor entre nós. O amor é a essência fundamental da natureza de Deus e carácter de seu próprio Ser. Deus é perfeito em amor. O amor de Deus é manifesto por Seu desejo absolutamente puro de doar, compartilhar e cuidar. Tais prerrogativas podem ser observadas em episódios distintos da narrativa bíblica, em nossas experiências cotidianas e ao longo do caminho histórico (criação-queda-redenção), no qual Deus nos convida a participar e dar respostas a quem nos pedir a razão dessa fé e experiência transformadora. Tenhamos em mente que, apesar do ódio, apesar de todos os motivos para a violência e degradação humanas, o bem e a ordem, a justiça e a misericórdia, o cuidado e a proximidade se manifestam no mundo. O Deus distante é signo da ausência da humanidade, o Deus amoroso é revelado no exercício do amor – não há outro veículo para o amor de Deus que o próprio homem. Esse é o mistério da encarnação.
Mas então qual o problema da resposta ‘Deus é amor’ para a justificação de nossas condutas diárias?
O que acontece é que tal justificativa parece ter se tornado bastante simplista. Ela tem sido comunicada sistematicamente de forma acrítica no embalo do que parece ser a mais pura irresponsabilidade ou falta de sabedoria cristã, seja, por ignorância sincera ou omissão voluntária. Ela está presente em cenas corriqueiras que parecem não favorecer qualquer desejo de solução do problema, isentando aqueles que dialogam, na maioria das vezes, da compreensão, do juízo e da mudança independente dos prejuízos produzidos por uma nova tomada de posição.
A invocação de Deus como amor associada à uma possível renúncia da responsabilidade humana é sintoma da diluição ou enfraquecimento da mensagem bíblica e também do próprio humano. Deus é amor em sua ira. Deus é amor na punição. Deus é amor em qualquer coisa que faça. O humano é portador do amor de Deus quando se encontra no lugar da obediência, quando compreende e cumpre o seu papel, quando não foge à sua vocação de agente e presença de um impasse que denuncie uma crise e uma fragilidade nesse estado de coisas que temos presenciado em nossa cultura.
Pensemos nisso em uma época de crescente oposição ao outro através da patologização – ou seja, transformar uma característica humana em doença, desordem ou inadequação ao meio, e consequente desabono da opinião de alguém através da rotulação de tudo como questão de ‘ódio’ que temos visto rotineiramente na discussão pública. A possível ignorância deixou de ser ausência de sabedoria e conhecimento – dirimida através do ensino-aprendizagem na relação mútua, para se tornar um sentimento irracional e aniquilador do outro. Esse outro que deveria ser antropologicamente tão íntimo que o chamado a serem filhos de Deus por amor Dele (Rm. 11:36) faria qualquer diferença ocasional virar sombra pálida a ser prontamente administrada. Mas quem quer entrar na lista do politicamente incorreto de nossos dias? Quem quer cair nesse lugar que incorporou cores mais fortes que o inferno de Dante? Ninguém. O ‘ódio’ é o oposto extremo do lugar santo da geração #MaisAmor, #PorFavor. E fim de conversa. Melhor, por exemplo, deixar Paulo sendo tachado de misógino (que denota ‘ódio’ por, ao contrário do termo machista) e seguirmos firmes e contextualizados em nossa fé. Pois é… Mas não deveria ser. Sejamos luz e cuidemos dos outros na verdade.
E por que tal justificativa se mostra simplista, irresponsável e sem qualquer sabedoria?
Primeiro, porque quando falamos amor, falamos o amor de muitas maneiras (storge, philia, eros e agapé) e em muitos sentidos, incorrendo sempre no risco de fazer o seu mau uso através de uma compreensão errada ou do exercício errado em condições, por exemplo, disfuncionais ou adoecidas.
Sim, os amores são bíblicos e cada um tem seu traço distintivo. Mas, como nos lembrou C. S. Lewis, “os amores humanos podem ser imagens gloriosas do amor divino. Nada menos que isso, mas também nada mais – proximidades de semelhança que de um lado podem ajudar, mas de outro servir de impedimento…”, quando, por exemplo, embalado pela obstinação de uma causa ou pessoa, esse amor se torna fonte de cruéis violações contra pessoas, causas e coisas, tirando-as, na maioria das vezes, de seu lugar de correspondência e benefício. Quer um exemplo atual dessa dificuldade e risco? Família é amor! Família é onde tem amor! Mas estamos falando de qual natureza amorosa? Há critérios ou exigências distintivas para este amor? Toda forma de amor vale a pena? Se cremos haver alguma ordem criacional para a família, temos então alguns parâmetros para essas respostas.
Segundo, porque o amor sem a correspondência adequada se torna puro sentimento passível de muitas grosserias. Moralidade fundada em sentimento como experiência de aprovação e desaprovação acaba por se tornar meios de sutis tiranias. Cria um tipo de raciocínio onde o certo e o errado são dados por motivos subjetivos e não por padrões universais – e objetivos, como aqueles presentes na Bíblia. Imagine essa baliza como prática de uma cultura inteira? Alguns podem dizer, se tem o sentimento certo, o motivo correto, logo a ação é a correta e desejável. Se é por amor, como poderia estar errado? Deus é amor! Mas que amor é este? Calcado na riqueza do caráter e operação de Deus ou em nossas ambíguas subjetividades? Precisamos responder. Afinal, a cultura do sentimento e da valorização das experiências emotivas do sujeito é uma questão séria em nossos dias e a espiritualidade cristã já se encontra sob pressão de um tipo de sentimentalismo bastante acentuado. Não por acaso, este já tenha contaminado as questões e posturas éticas de muitos cristãos.
No artigo The Meanings of Love in the Bible (Os Significados do Amor na Bíblia), disponível na Web, John Piper percorre de Gênesis a Apocalipse apontando versículo a versículo onde aparecem o (1) amor de Deus, (2) amor do humano por Deus, (3) amor do humano pelo humano, (4) amor do humano pelas coisas, (5) amor de Deus pelo seu Filho, (6) amor de Deus pelo humano e (7) amor do humano por Deus e por Cristo. Ele é profícuo em demonstrar as dimensões e as diferentes naturezas do amor e do seu exercício, nos fazendo lembrar que generalizações podem nos roubar a natureza e a responsabilidade de fazê-lo coincidir com o amor do próprio Deus, fonte primária de todos os amores. Portanto, estejamos atentos. Deus é amor (1 Jo. 4:8), mas também é justo (Sl. 7:11), santo (Ap. 4:8), soberano (Ap. 1:5) e imutável (Hb. 7:24) e quando lida conosco o faz sem precisar compensar ou negociar qualquer desses atributos.
Não poderia deixar de mencionar que na esteira do uso torpe da verdade bíblica fundamental, Deus é amor,se encontra também aquela máxima popular: Deus odeia o pecado, mas ama o pecador. Fico aqui pensado se o que João viu no Apocalipse eram objetos inanimados reconhecidos como pecado ou seres humanos irreconciliáveis. Mas melhor deixar esse papo para outra hora.
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