Pesquisa no blog

sexta-feira, 28 de março de 2014

A FESTA DO FIM DO MUNDO



Na cultura popular de tradição europeia o tipo de cenário mais impor­tante era o do festival: festivais de família, como casa­men­tos; festivais comu­ni­tá­rios, como a festa do padroeiro de uma cidade ou paróquia; festivais anuais que envolviam a maior parte dos europeus, como a Páscoa, a Festa da Primavera [May Day], o solstício de verão [Midsummer], a Quadra Natalícia [Twelve Days of Christmas], o Ano Novo e a Epifania; e, final­mente, o Carnaval. Eram ocasiões especiais em que as pessoas paravam de trabalhar para comer, beber e gastar tudo que tinham.
Peter Burke, Popular Culture in Early Modern Europe

O Carnaval con­tem­po­râ­neo é o fóssil de uma espécie que já vicejou em todos os países europeus. Se persiste no século XXI é por um motivo, digamos, litúrgico: por estar inse­pa­ra­vel­mente ligado – com elos ide­o­ló­gi­cos, cro­no­ló­gi­cos e logís­ti­cos – ao calen­dá­rio religioso do cato­li­cismo.
Os excessos do Carnaval eram resposta a um dilema religioso.
A despeito da sua ambi­gui­dade, da sua absoluta pro­xi­mi­dade do profano, não há festa que esteja mais entra­nhada na alma e na vocação de um festival sagrado. O Carnaval não existe por si: ele é o espelho, o prenúncio e a con­tra­par­tida da Quaresma.
Não é de admirar que sejam os dois festivais típicos da tradição católica, e que tenham sido expur­ga­dos dos países de tradição pro­tes­tante onde antes pros­pe­ra­vam. O cato­li­cismo é uma religião de con­tras­tes, de comu­na­li­da­des e de encontros, e portanto de festas – festas alegres e festas tristes, festas dra­má­ti­cas e festas populares. O ideal pro­tes­tante é ascético, antis­sép­tico e fleu­má­tico: as emoções devem ser mantidas sob controle. Que ninguém tenha o que lamentar, que ninguém tenha o que festejar: faces da mesma rigorosa moeda.
Porém, durante os séculos, antes que a Reforma os separasse, Carnaval e Quaresma encenaram na rua os conflitos e teatros da alma.

A santa permissividade

O Carnaval é celebrado de modo diverso em cada país em que sobrevive, e era celebrado de modo diverso em cada país de onde foi eliminado. Mas por trás das dife­ren­tes mani­fes­ta­ções exte­ri­o­res o espírito é o mesmo: encarnar o banquete e a festa do fim do mundo – comer, beber e divertir-se como se não houvesse amanhã.
A folia e os excessos eram, em grande parte, resposta a um dilema religioso. Na Itália aquela era la settimana dei setti giorni grassi/a semana dos sete dias gordos, e comer em excesso nesse período era uma obrigação ao mesmo tempo piedosa e logística. Era neces­sá­rio consumir em uma semana tudo que não podia ser consumido durante os quarenta dias de abs­ti­nên­cia da Quaresma: toda a carne, todos os ovos, todo o peixe e todos os lati­cí­nios. Entre o pecado de comer essa coisas durante a Quaresma e o pecado de deixar que se estra­gas­sem, a opção era o banquete: comer agora como não se comia o ano inteiro.
A comilança e a festa cul­mi­na­vam na Terça-feira Gorda – o Mardi Gras francês, Fat Tuesday em inglês, – o dia em que nada podia deixar se ser provado, o dia em que nada de bom podia ser poupado. Era, afinal de contas, o último dia para se fazer sexo antes de uma abs­ti­nên­cia prevista de quarenta dias. Bem-vindo, meu caro, à festa do fim do mundo: comamos e bebamos, porque amanhã morreremos.
Desse modo, num daqueles belos paradoxos que só o coração católico saberia abrigar, a própria santidade da Quaresma (e do alimento) requeria das pessoas que se exce­des­sem no Carnaval – que se per­mi­tis­sem naqueles dias o que não se per­mi­ti­riam em qualquer outra época.
Essa per­mis­si­vi­dade, obvi­a­mente, se refletia em todos os aspectos da vida. No Carnaval o inad­mis­sí­vel não era só permitido, era pra­ti­ca­mente requerido de todos.
Uma folia com vocação litúrgica, uma festa de excessos concebida para se evitar des­per­dí­cios, uma cele­bra­ção sem rédeas como pre­pa­ra­ção para um período de contrição e aus­te­ri­dade: o Carnaval era contraste e con­tras­tes e parte de contrastes.
Tratava-se do momento mais lembrado e mais esperado do ano, e ecos dessa imensa força gra­vi­ta­ci­o­nal persistem no nosso mundo. Chico Buarque: Quem me vê sempre parado, distante, garante que eu não sei sambar: tô me guardando pra quando o Carnaval chegar.

http://www.baciadasalmas.com/2014/a-festa-do-fim-do-mundo/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-festa-do-fim-do-mundo

Nenhum comentário:

Postar um comentário