1.AS
CONCEPÇÕES CONCORRENTES DE DEUS
Pediram para que eu lhes dissesse em que os cristãos acreditam, mas vou
falar antes sobre uma coisa em que eles não precisam acreditar. Se você é
cristão, não precisa acreditar que todas as outras religiões estão simplesmente
erradas de cabo a rabo. Se você é ateu, é obrigado a acreditar que o ponto de
vista central de todas as religiões do mundo não passa de um gigantesco erro.
Se você é cristão, está livre para pensar que todas as religiões, mesmo as
mais esquisitas, possuem pelo menos um fundo de verdade. Quando eu era ateu,
tentei me convencer de que a raça humana sempre estivera enganada sobre o assunto
que lhe era mais caro; quando me tornei cristão, pude adotar uma opinião mais
liberal sobre o assunto.
É claro, no entanto, que, pelo fato de sermos cristãos, nós temos
efetivamente o direito de pensar que, onde o cristianismo difere das outras
religiões, ele está certo e as outras, erradas. É como na aritmética: para uma
determinada soma, só existe uma resposta certa, e todas as outras estão
erradas; porém, algumas respostas erradas estão mais próximas da certa do que
as outras.
A primeira grande divisão da humanidade se dá entre a maioria que
acredita em alguma espécie de Deus, ou deuses, e a minoria que não acredita.
Nesse ponto, os cristãos se juntam à maioria - os gregos e romanos da
Antigüidade, os selvagens modernos, os estóicos, os platônicos, os hindus, os
maometanos etc, contra o materialismo europeu ocidental moderno.
Passo agora à grande divisão seguinte. As pessoas que acreditam em Deus
podem ser agrupadas de acordo com o tipo de Deus em que acreditam. Neste
assunto, existem duas concepções bem diferentes uma da outra. Uma delas é a de
que ele está acima do Bem e do Mal. Nós, seres humanos, dizemos que uma coisa é
má e outra é boa. De acordo com alguns, porém, esse é um mero ponto de vista
humano. Essas pessoas diriam que, quanto mais sábios nos tornamos, menos nos
interessamos por classificar as coisas dessa maneira, e nos damos conta com
clareza cada vez maior de que tudo é bom sob certo ponto de vista e mau sob
outro, e que nada poderia ser diferente do que é. Em conseqüência, essas
pessoas crêem que, antes mesmo de nos aproximarmos do ponto de vista divino,
essa distinção desaparece totalmente. Nós consideramos o câncer mau, diriam
elas, porque ele mata pessoas; mas poderíamos igualmente chamar um cirurgião de
mau porque ele mata o câncer. Tudo depende do ponto de vista. A outra idéia,
oposta a esta, é de que Deus é definitivamente "bom" ou "justo",
é um Deus que toma partido, que ama o amor e odeia o ódio, que quer que nos
comportemos de uma forma e não de outra. O primeiro ponto de vista - o de um
Deus acima do Bem e do Mal - é chamado panteísmo. Foi sustentado por Hegel, o
grande filósofo prussiano, e, na medida em que posso compreendê-los, pelos
hindus. O outro ponto de vista é sustentado pelos judeus, maometanos e
cristãos.
Essa grande diferença entre o panteísmo e a idéia cristã de Deus normalmente
traz outra a reboque. Os panteístas em geral acreditam que Deus, para usar uma
metáfora, anima o universo como nós animamos o corpo: o universo quase é Deus, de tal modo que, se o universo
não existisse, Deus também não existiria, pois todos os seres do universo fazem
parte dele. A idéia cristã é bem diferente. Os cristãos pensam que Deus
inventou e criou o universo como um homem que pinta um quadro ou compõe uma
música. Um pintor não é o que ele pinta e não vai morrer se o quadro for destruído. Quando dizemos que "ele
infundiu sua alma na pintura", só queremos dizer que a beleza e o
fascínio que o quadro desperta vieram da mente dele. A habilidade dele não
está presente na tela da mesma forma que está presente em sua cabeça ou mesmo
em suas mãos. Acho que você já compreendeu que a diferença entre panteístas e
cristãos segue essa mesma linha. Se você não leva muito a sério a distinção
entre o Bem e o Mal, é fácil dizer que qualquer coisa que encontra no mundo é
uma parte de Deus. Por outro lado, se acha que certas coisas são realmente más
e Deus é realmente bom, já não pode falar dessa maneira. Tem de acreditar que
existe uma separação entre Deus e o mundo e que certas coisas que vemos são contrárias
à sua vontade. Confrontado com o câncer ou com a miséria, o panteísta pode
dizer: "Se pudéssemos ver as coisas do ponto de vista divino, nos daríamos
conta de que isso também é Deus." O cristão retruca: "Não diga essa
maldita asneira!"[1] O cristianismo
é uma religião aguerrida. Para o cristão, Deus criou o mundo - "tirou de
sua cabeça" o espaço e o tempo, o calor e o frio, todas as cores e
sabores, todos os animais e vegetais, como um homem que cria uma história. Por
outro lado, para o cristianismo, muitas das coisas criadas por Deus caíram no
erro, e Deus insiste - aliás, de forma enfática - em colocá-las de volta no
lugar.
Com isto, é claro, surge uma pergunta difícil. Se um Deus bom criou o
mundo, por que esse mundo deu errado? Por muitos anos, recusei-me a ouvir as
respostas cristãs à pergunta, pois tinha a sensação persistente de que "o
que quer que vocês digam, por mais astutos que sejam seus argumentos, não é
muito mais simples e mais fácil afirmar que o mundo não foi feito por um poder
dotado de inteligência? As argumentações de vocês não são apenas uma
complicada tentativa de fugir ao óbvio?" Mas, através disso, acabei
deparando com outra dificuldade.
Meu argumento contra Deus era o de que o universo parecia injusto e
cruel. No entanto, de onde eu tirara essa idéia de justo e injusto? Um
homem não diz que uma linha é torta se não souber o que é uma linha reta. Com o
que eu comparava o universo quando o chamava de injusto? Se o espetáculo
inteiro era ruim do começo ao fim, como é que eu, fazendo parte dele, podia
ter uma reação assim tão violenta? Um homem sente o corpo molhado quando entra
na água porque não é um animal aquático; um peixe não se sente assim. E claro
que eu poderia ter desistido da minha idéia de justiça dizendo que ela não
passava de uma idéia particular minha. Se procedesse assim, porém, meu argumento
contra Deus também desmoronaria - pois depende da premissa de que o mundo é
realmente injusto, e não de que simplesmente não agrada aos meus caprichos
pessoais. Assim, no próprio ato de tentar provar que Deus não existe - ou, por
outra, que a realidade como um todo não tem sentido -, vi-me forçado a admitir
que uma parte da realidade - a saber, minha idéia de justiça- tem sentido, sim.
Ou seja, o ateísmo é uma solução simplista. Se o universo inteiro não tivesse
sentido, nunca perceberíamos que ele não tem sentido - do mesmo modo que, se
não existisse luz no universo e as criaturas não tivessem olhos, nunca nos
saberíamos imersos na escuridão. A própria palavra escuridão não teria
significado.
2.
A INVASÃO
Pois bem, então o ateísmo é simplista. E vou lhes falar de outro ponto de
vista igualmente simplista que chamo de "cristianismo
água-com-açúcar". De acordo com ele, existe um bom Deus no Céu e tudo o
mais vai muito bem, obrigado - o que deixa completamente de lado as doutrinas
difíceis e terríveis a respeito do pecado, do inferno, do diabo e da redenção.
Os dois pontos de vista são filosofias pueris.
Não convém exigir uma religião simples. Afinal de contas, as coisas no
mundo real são complexas. Parecem simples, mas não são. A mesa à qual estou
sentado parece simples, mas peça a um cientista que diga do que ela é
realmente feita: você ouvirá uma longa história a respeito dos átomos e de como
as ondas luminosas refletem-se neles e chegam ao nervo óptico, provocando um efeito
no cérebro. Assim, o que chamamos de "enxergar a mesa" nos leva a
mistérios e complicações aparentemente inesgotáveis. Uma criança que faz uma
oração infantil é algo singelo. Se você estiver disposto a parar por aí, ótimo.
Mas, se você não se contentar com isso (coisa que acontece bastante no mundo
moderno) e quiser levar avante o questionamento sobre o que realmente acontece,
tem de estar preparado para enfrentar dificuldades. Se exigimos algo que vá
além da simplicidade, é tolice nos queixarmos de que esse algo a mais não é
simples. Com muita freqüência, entretanto, esse procedimento tolo é adotado
por pessoas que não têm nada de tolas, mas que, consciente ou
inconscientemente, querem destruir o cristianismo. Essas pessoas apresentam
uma versão da religião cristã própria para crianças de seis anos e fazem dela o
objeto de seu ataque. Quando tentamos explicar a doutrina cristã tal como é
entendida por um adulto instruído, elas se queixam de que estamos dando um nó
na cabeça delas, de que tudo o que dizemos é complicado demais e de que, se
Deus realmente existisse, teria feiro a "religião" simples, pois a
simplicidade é bela etc. Esteja sempre em guarda contra este tipo de gente,
sujeitos que trocam de argumento a cada minuto e só nos fazem perder tempo.
Note o absurdo da idéia de um
Deus que "faz uma religião simples": como se a "religião"
fosse algo inventado por Deus, e não a sua afirmação de certos fatos
inalteráveis a respeito de sua própria natureza.
A experiência me diz que a realidade, além de complicada, é quase sempre
estranha. Não é precisa, nem óbvia, nem previsível. Por exemplo, quando você
descobre que a Terra e os outros planetas giram em torno do Sol, pensa
naturalmente que todos os planetas devem se comportar da mesma maneira, que
são separados por distâncias iguais ou distâncias que aumentam
proporcionalmente, ou que devem aumentar ou diminuir de tamanho à medida que
se afastam do Sol. No entanto, não encontramos nem métrica nem método (que
possamos compreender) nos tamanhos ou nas distâncias. Além disso, alguns
planetas possuem uma lua; outros, quatro; alguns, nenhuma; e um planeta tem um
anel.
A realidade, com efeito, é algo que ninguém poderia adivinhar. Este é um
dos motivos pelo qual acredito no cristianismo. E uma religião que ninguém
poderia adivinhar. Se ela nos oferecesse o tipo de universo que esperaríamos
encontrar, eu acharia que ela havia sido inventada pelo homem. Porém, a
religião cristã não é nada daquilo que esperávamos; apresenta todas as mudanças
inesperadas que as coisas reais possuem. Deixemos de lado, portanto, todas as
filosofias pueris e suas respostas simplistas. O problema não é nada simples, e a resposta tampouco.
E qual é o problema? E um universo cheio de coisas evidentemente más e
aparentemente sem sentido, mas que ao mesmo tempo contém criaturas como nós,
que têm a consciência dessa maldade e desse absurdo. Existem só dois pontos de
vista que conseguem contemplar todos esses fatos. Um deles é o cristianismo,
segundo o qual estamos num mundo bom que se perdeu, mas que ainda assim
conserva a memória de como deveria ser. O outro ponto de vista chama-se
dualismo. Dualismo é a crença de que, na raiz de todas as coisas, há duas
forças iguais e independentes, uma delas boa, a outra má. O universo é o
campo de batalha no qual travam uma guerra sem fim. Creio que, ao lado do cristianismo,
o dualismo é a crença mais viril e sensata existente no mercado. Porém, traz
em si uma armadilha.
Os dois poderes, ou espíritos, ou deuses - o bom e o mal - são tidos como
independentes um do outro. Ambos existem eternamente. Nenhum deles gerou o outro,
nenhum deles tem mais direito que o outro de chamar a si mesmo de
"Deus". Cada um deles, presumivelmente, considera a si mesmo o Bem,
e ao outro, o Mal. Um deles aprecia o ódio e a crueldade; o outro, o amor e a
misericórdia; e cada qual sustenta sua própria visão das coisas. No entanto, o
que temos em mente quando chamamos um deles de Poder Benigno, e o outro, de Poder Maligno? Talvez
queiramos dizer simplesmente que preferimos um ao outro — como alguém pode
preferir uma cerveja a um vinho doce; ou então queiramos dizer que o que quer
que cada um deles pense a seu respeito, e independentemente de nossas preferências
humanas imediatas, um deles está efetivamente errado, enganado ao se
considerar benigno. Ora, se tudo o que queremos dizer é que preferimos o
primeiro poder, temos de desistir definitivamente dessa conversa de Bem e de
Mal, pois o Bem é aquilo que devemos preferir quaisquer que sejam os nossos
sentimentos momentâneos. Se "ser bom" significasse apenas aderir ao
lado que por acaso nos agrada, o Bem não mereceria ser chamado assim. Logo, o
que queremos dizer é que um dos poderes está errado, enquanto o outro está
certo.
Mas no momento em que dizemos isto, insere-se no universo um terceiro
fator, distinto dos outros dois poderes: uma lei, ou padrão, ou regra geral do
Bem à qual o primeiro poder se submete, e o outro, não. Se os dois poderes são
julgados por esse padrão, então o próprio padrão ou o Ser que o criou está além
e acima de qualquer um dos poderes. E ele o Deus verdadeiro. Na realidade,
quando dizemos que um poder é bom e o outro é mau, entendemos que um está em
relação harmoniosa com o Deus verdadeiro e supremo, e o outro, não.
O mesmo argumento pode ser apresentado de outra maneira. Se o dualismo é
real, o poder maligno deve ser um ente que ama o Mal pelo Mal. Na realidade, porém,
não encontramos ninguém que aprecie o Mal só porque é o Mal. O mais próximo
disso seria a crueldade. Mas, na vida real, as pessoas são cruéis por um de
dois motivos: por sadismo, ou seja, por causa de uma perversão sexual que faz
da dor um objeto de prazer sensual, ou pela busca de algum benefício externo -
dinheiro, poder, segurança. O prazer, o dinheiro, o poder e a segurança,
considerados em si mesmos, são coisas boas. A maldade consiste em tentar
obtê-los pelos métodos errados, ou de forma errada, ou em excesso. Não quero
dizer, de modo algum, que não sejam terrivelmente perversas as pessoas que
agem assim. Digo apenas que a perversidade, quando a examinamos de perto,
revela-se como um jeito errado de buscar o Bem. Podemos decidir ser bons por
amor à própria bondade, mas não podemos ser maus por amor à maldade. Podemos
agir de forma bondosa mesmo quando não nos sentimos bondosos e não há uma
recompensa para agir assim; a bondade é simplesmente a atitude correta.
Ninguém, no entanto, é cruel simplesmente porque a crueldade é má; só o é
porque ela lhe parece agradável ou lhe é útil. Em outras palavras, a maldade
não consegue sequer ser má como a bondade é boa. A bondade, por assim dizer, é ela mesma, ao passo que a maldade é
apenas o Bem pervertido. E, para que haja uma perversão, é preciso que antes
haja uma perfeição. Chamamos o sadismo de perversão sexual, mas, para chamá-lo
assim, temos de ter a idéia de uma sexualidade normal. Conseguimos distinguir
claramente um do outro porque a perversão pode ser explicada pela normalidade,
mas a normalidade não pode ser explicada pela perversão. Segue-se que o Poder
Maligno, que supostamente está em pé de igualdade com o Poder Benigno e ama o
Mal pelo Mal como aquele ama o Bem pelo Bem, não passa de um bicho-papão. Para
ser mau, ele tem de querer algo de bom e buscá-lo da forma errada: tem de ter
impulsos originariamente bons para depois pervertê-los. Mas, se é mau, não pode
fornecer a si mesmo nem as coisas boas e desejáveis nem os bons impulsos
passíveis de perversão. Tem de receber ambos do Poder Benigno. Nesse caso, não
é independente. Faz parte do mundo do Poder do Bem: ou foi gerado por este, ou
por um poder superior a ambos.
Vamos colocar o assunto de forma mais clara ainda. Para que seja mau, esse
poder tem de existir e ter inteligência e vontade. Ora, a existência, a
inteligência e a vontade são, em si mesmas, coisas boas. Logo, esse poder tem
de receber essas qualidades do Poder do Bem: mesmo para ser mau, tem de
emprestá-las ou roubá-las do seu opositor. Você começa a perceber agora por que o cristianismo sempre disse que o
diabo é um anjo caído? Isto não é apenas uma historieta para crianças. E o
reconhecimento real do fato de que o Mal é um parasita, não um ente original.
As forças que fazem com que o Mal possa subsistir foram dadas pelo Bem. Todas
as coisas que propiciam que um homem mau seja efetivamente mau são, em si
mesmas, qualidades: resolução, esperteza, boa aparência, a própria existência.
E por causa disso que o dualismo, a rigor, não funciona.
Devo admitir, por outro lado, que o verdadeiro cristianismo (o qual não
deve ser confundido com o cristianismo água-com-açúcar) é bem mais próximo do
dualismo do que as pessoas imaginam. Uma das coisas que me surpreenderam quando
pela primeira vez li a sério o Novo Testamento são as menções freqüentes a uma
Força Negra em ação no universo — um poderoso espírito maligno, causa principal
da morte, da doença e do pecado. A diferença é que o cristianismo pensa que
essa Força Negra foi criada por Deus e que no momento da criação era benigna,
tendo-se perdido depois. O cristianismo concorda com o dualismo em que o
universo está em guerra, mas discorda que seja uma guerra entre forças
independentes. Considera-a antes uma guerra civil, uma rebelião, e afirma que
vivemos na parte do universo ocupada pelos rebeldes.
Um território ocupado pelo inimigo — assim é este mundo. O cristianismo é
a história de como o rei por direito desembarcou disfarçado em sua terra e nos chama a tomar parte
numa grande campanha de sabotagem. Quando você vai à igreja, na verdade vai
receber os códigos secretos mandados pelos nossos amigos: não é por outro
motivo que o inimigo fica tão ansioso para nos impedir de freqüentá-la. Ele
apela à nossa vaidade, preguiça e esnobismo intelectual. Sei que alguém vai me
perguntat: "Você quer mesmo, na época em que vivemos, trazer de novo à baila
a figura do nosso velho amigo, o diabo, com seus chifres e seu rabo?" Bem,
o que a "época em que vivemos" tem a ver com o assunto, não sei.
Quanto aos chifres e ao rabo, não faço muita questão deles. Quanto ao mais,
porém, minha resposta é "sim". Não afirmo conhecer coisa alguma sobre
a aparência pessoal do diabo, mas, se alguém realmente quisesse conhecê-lo
melhor, eu diria a essa pessoa: "Não se preocupe. Se você realmente quiser
travar relações com ele, vai conseguir. Se vai gostar ou não da experiência,
isso é outro assunto."
3. A ALTERNATIVA ESTARRECEDORA
Os cristãos acreditam, portanto, que um poder maligno se alçou, por
enquanto, ao posto de Príncipe desse Mundo. E inevitável que isso levante
alguns problemas. Esse estado de coisas está de acordo com a vontade de Deus
ou não? Se a resposta for "sim", você dirá que esse Deus é bastante
esquisito. Se for "não", como pode acontecer algo que contrarie a
vontade de um ser dotado de poder absoluto?
Quem quer que tenha exercido um papel de autoridade, no entanto, sabe que
algo pode estar de acordo com sua vontade por um lado e em desacordo por outro.
É bastante sensato que a mãe diga a seus filhos: "Não vou mandá-los
arrumar o quarto de brinquedos toda noite. Vocês têm de aprender a fazer isso sozinhos." Quando, certa
noite, ela encontra o quarto todo bagunçado, com o urso de pelúcia, as
canetinhas e o livro de gramática espalhados pelo chão, isso contraria a sua
vontade; afinal, ela preferia que os filhos fossem mais organizados. Por outro
lado, foi a sua vontade que permitiu que as crianças ficassem livres para
deixar o quarto desorganizado. A mesma questão surge em qualquer regimento,
sindicato ou escola. Quando algo é opcional, metade das pessoas não o cumprirá.
Não era isso que queríamos, mas nossa vontade o tornou possível.
Provavelmente, o mesmo acontece no universo. Deus criou coisas dotadas de
livre-arbítrio: criaturas que podem fazer tanto o bem quanto o mal. Alguns
pensam que podem conceber uma criatura que, mesmo desfrutando da liberdade,
não tivesse possibilidade de fazer o mal. Eu não consigo. Se uma coisa é livre
para o bem, é livre também para o mal. E o que tornou possível a existência do
mal foi o livre-arbítrio. Por que, então, Deus o concedeu? Porque o
livre-arbítrio, apesar de possibilitar a maldade, é também aquilo que torna
possível qualquer tipo de amor, bondade e alegria. Um mundo feito de autômatos
— criaturas que funcionassem como máquinas - não valeria a pena ser criado. A
felicidade que Deus quis para suas criaturas mais elevadas é a felicidade de
estar, de forma livre e voluntária, unidas a ele e aos demais seres num êxtase de amor e deleite ao qual os maiores
arroubos de paixão terrena entre um homem e uma mulher não se comparam. Por
isso, essas criaturas têm de ser livres.
E claro que Deus sabia o que poderia acontecer se a liberdade fosse usada
de forma errada. Aparentemente, ele achou que valia a pena correr o risco.
Talvez queiramos discordar dele. Existe, porém, um empecilho para se discordar
de Deus. Ele é a fonte da qual vem toda a nossa faculdade de raciocínio: não
podemos estar certos e ele, errado, assim como uma onda não pode mudar o
sentido da maré. Quando discutimos com ele, estamos na verdade discutindo
contra o próprio poder que nos tornou capazes de discutir: é como se
cortássemos o galho no qual estamos sentados. Se Deus pensa que o estado de
guerra no universo é um preço justo a pagar pelo livre-arbítrio - ou seja, pela
criação de um mundo vivaz no qual as criaturas podem fazer tanto um grande bem
quanto um grande mal, no qual acontecem coisas realmente importantes, em vez de
um mundo de marionetes que só se movem quando ele puxa as cordinhas -, devemos
igualmente consentir que o preço é justo.
Quando compreendemos a questão do livre-arbítrio, vemos o quanto é tolo
perguntar o que alguém certa vez me perguntou: "Por que Deus criou um ser
de matéria tão corrompida, condenando-o ao erro?" Quanto melhor for a matéria da qual for
feita uma criatura -quanto mais ela for inteligente, forte e livre -, tanto melhor
será ela quando tender para o certo, e tanto pior quando tender para o errado.
Uma vaca não pode ser nem muito boa, nem muito má; um cachorro já pode ser um
pouco melhor ou um pouco pior; uma criança pode ser ainda melhor ou pior; um
homem comum, ainda melhor ou pior; um homem de gênio, melhor ou pior ainda; um
espírito sobre-humano, melhor - ou pior — do que todos os demais.
Como pôde o Poder das Trevas ter caído no erro? Para essa pergunta, sem
dúvida, nós, seres humanos, não conseguimos formular uma resposta com absoluta
certeza. Podemos, entretanto, oferecer um palpite razoável (e tradicionalmente
aceito) baseado em nossas próprias experiências de erro. No momento em que
possuímos um ego, temos a possibilidade de nos colocar em primeiro lugar - de
querer ser o centro de tudo — de querer, na verdade, ser Deus. Esse foi o
pecado de Satanás, e foi esse o pecado que ele ensinou à raça humana. Certas
pessoas julgam que a queda do homem teve algo a ver com o sexo, mas estão
enganadas. (A história contada no Livro do Gênesis sugere, isto sim, que nossa
natureza sexual foi corrompida após a queda, como uma conseqüência desta, e
não uma causa.) O que Satanás colocou na cabeça dos nossos remotos ancestrais
foi a idéia de que
poderiam "ser como deuses" — poderiam bastar-se a si mesmos como se
fossem seus próprios criadores; poderiam ser senhores de si mesmos e inventar
um tipo de felicidade fora e à parte de Deus. Dessa tentativa, que não pode
dar certo, vem quase tudo o que chamamos de história humana: o dinheiro, a
miséria, a ambição, a guerra, a prostituição, as classes, os impérios, a
escravidão - a longa e terrível história da tentativa do homem de descobrir a
felicidade em outra coisa que não Deus.
A razão pela qual essa tentativa não pode ser bem-sucedida é a seguinte:
Deus nos criou como um homem inventa uma máquina. Um carro é feito para ser
movido a gasolina. Deus concebeu a máquina humana para ser movida por ele
mesmo. O próprio Deus é o combustível que nosso espírito deve queimar, ou o alimento
do qual deve se alimentar. Não existe outro combustível, outro alimento. Esse é
o motivo pelo qual não podemos pedir que Deus nos faça felizes e ao mesmo tempo
não dar a mínima para a religião. Deus não pode nos dar uma paz e uma
felicidade distintas dele mesmo, porque fora dele elas não se encontram. Tal
coisa não existe.
Essa é a chave da história humana. Despende-se uma energia
incrível, erguem-se civilizações, concebem-se excelentes instituições, mas algo
sempre dá errado. Uma falha fatal sempre permite que as pessoas mais egoístas e cruéis subam ao poder, trazendo a
derrocada, a desgraça e a ruína. A máquina, em outras palavras, emperra, Ela
parece engrenar bem e rodar por alguns metros, mas então se quebra. Tentamos
fazê-la funcionar com o combustível errado. E isso que Satanás fez para nós,
seres humanos.
E o que Deus fez? Em primeiro lugar, nos deu uma consciência, o sentido do
certo e do errado. Ao longo da história, certas pessoas tentaram obedecê-la
(algumas, com muito esforço); nenhuma delas conseguiu obedecê-la totalmente.
Em segundo lugar, enviou à raça humana o que chamo de "sonhos bons":
as histórias extraordinárias espalhadas por todas as religiões pagãs sobre um
deus que morre e ressuscita e que, por sua morte, dá nova vida ao homem. Em
terceiro lugar, Ele escolheu um certo povo e, por séculos a fio, martelou na
cabeça desse povo que tipo de Deus ele era, que não havia outro fora dele e
que ele exigia a boa conduta. Esse povo foi o povo judeu, e o Antigo Testamento
nos dá a narrativa de como foi esse martelar.
O verdadeiro choque vem depois. Entre os judeus surge, de repente, um
homem que começa a falar como se ele próprio fosse Deus. Afirma categoricamente
perdoar os pecados. Afirma existir desde sempre e diz que voltará para julgar
o mundo no fim dos tempos. Devemos aqui esclarecer uma coisa: entre os
panteístas, como os indianos, qualquer um pode dizer que é uma parte de Deus, ou é uno com
Deus, e não há nada de muito estranho nisso. Esse homem, porém, sendo um
judeu, não estava se referindo a esse tipo de divindade. Deus, na sua língua,
significava um ser que está fora do mundo, que criou o mundo e é infinitamente
diferente de tudo o que criou. Quando você entende esse fato, percebe que as
coisas ditas por esse homem foram, simplesmente, as mais chocantes já
pronunciadas por lábios humanos.
Há um elemento do que ele afirmava que tende a passar despercebido, pois o
ouvimos tantas vezes que já não percebemos o que ele de fato significa.
Refiro-me ao perdão dos pecados. De todos os pecados. Ora, a menos que seja
Deus quem o afirme, isso soa tão absurdo que chega a ser cômico. Compreendemos
que um homem perdoe as ofensas cometidas contra ele mesmo. Você pisa no meu
pé, ou rouba meu dinheiro, e eu o perdôo. O que diríamos, no entanto, de um
homem que, sem ter sido pisado ou roubado, anunciasse o perdão dos pisões e dos
roubos cometidos contra os outros? Presunção asinina é a descrição mais gentil
que podemos dar da sua conduta. Entretanto, foi isso o que Jesus fez. Anunciou
ao povo que os pecados cometidos estavam perdoados, e fez isso sem consultar os
que, sem dúvida alguma, haviam sido lesados por esses pecados. Sem hesitar,
comportou-se como se fosse ele a parte interessada, como se fosse o principal
ofendido. Isso só tem sentido se ele for realmente Deus, cujas leis são transgredidas
e cujo amor é ferido a cada pecado cometido. Nos lábios de qualquer pessoa que
não Deus, essas palavras implicam algo que só posso chamar de uma imbecilidade
e uma vaidade não superadas por nenhum outro personagem da história.
No entanto (e isto é estranho e, ao mesmo tempo, significativo), nem mesmo
seus inimigos, quando lêem os evangelhos, costumam ter essa impressão de imbecilidade
ou vaidade. Quanto menos os leitores sem preconceitos. Cristo afirma ser
"humilde e manso", e acreditamos nele, sem nos dar conta de que, se
ele fosse somente um homem, a humildade e a mansidão seriam as últimas
qualidades que poderíamos atribuir a alguns de seus ditos.
Estou tentando impedir que alguém repita a rematada tolice dita por
muitos a seu respeito: "Estou disposto a aceitar Jesus como um grande
mestre da moral, mas não aceito a sua afirmação de ser Deus." Essa é a única
coisa que não devemos dizer. Um homem que fosse somente um homem e dissesse as coisas
que Jesus disse não seria um grande mestre da moral. Seria um lunático - no
mesmo grau de alguém que pretendesse ser um ovo cozido — ou então o diabo em
pessoa. Faça a sua escolha. Ou esse homem era, e é, o Filho de Deus, ou não passa de um louco ou coisa pior. Você
pode querer calá-lo por ser um louco, pode cuspir nele e matá-lo como a um
demônio; ou pode prosternar-se a seus pés e chamá-lo de Senhor e Deus. Mas que
ninguém venha, com paternal condescendência, dizer que ele não passava de um
grande mestre humano. Ele não nos deixou essa opção, e não quis deixá-la.
[1] Um ouvinte queixou-se do uso da
palavra damned (maldita), que seria uma imprecação leviana. Mas eu quis
dizer literalmente o que disse: uma asneira maldita é a que sofre a maldição
de Deus e que (exceto pela graça divina) leva à morte eterna os que nela
acreditam.
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