"Em sua presente versão “social” a internet promove a igrejização da experiência com uma eficácia que a própria igreja não seria capaz de sonhar. Os velhos mecanismos de validação e de reforço encontraram terreno perfeito para se instalar e multiplicar: primeiro no salão árido dos blogs, dos powerpoints e das mensagens encaminhadas de e-mail, mas mais recentemente nas camas confortáveis do twitter e do facebook."
Houve tempo em que o mundo era um deserto, e quem encontrava uma igreja encontrava um tesouro. Hoje em dia, quando ninguém tem como ignorar o mal que a igreja institucional perpetrou e permitiu ao longo dos séculos, pode ser fácil ignorar que ao longo de todo esse tempo a igreja permaneceu, a seu próprio modo ambíguo (porque institucional) um refúgio e um conforto – num tempo em que essas coisas eram consideravelmente mais raras e mais caras do que no nosso.
Por quase dois milênios a igreja foi, no ocidente, o único lugar em que gente de todos os sexos, raças e níveis sociais podia ser concebivelmente vista debaixo do mesmo teto ao mesmo tempo. Homens e mulheres, camponeses e magistrados, residentes e estrangeiros, ricos e pobres fazendo alguma coisa juntos? Oficialmente? Em público? Só se fosse na igreja. É claro que valiam e se reencenavam, em sua maior parte, as diferenças de tratamento e as distâncias sociais do mundo lá fora, mas incrivelmente todos os joelhos se dobravam diante da mesma ideia.
A seu modo capenga e durante toda uma era, portanto, a igreja mostrou-se capaz de oferecer um senso de pertença àqueles que não podiam esperar encontrar absolutamente qualquer outro espaço social que se mostrasse disposto a acolhê-las. Não é inconcebível que a persistência e a proeminência da igreja como “lugar para todos” tenha semeado no coração dos homens, num processo que pode ter durado toda a era cristã, a noção de direitos humanos universais.
É lógico que a igreja formal não só recebia as muitas recompensas dessa unanimidade, mas exigia também um preço, a total conformidade de comportamento e de opinião.
O problema e o fascínio de uma instituição estão em que o seu preço é também a sua recompensa: quando mais conformado e engajado você se mostra, mais inabalável e compensador será o senso de identidade gerado pela sua experiência – e menor o risco de você sentir-se tentado a questionar a validade da instituição ou da sua participação nela.
Curiosamente, esse efeito de reforço da experiência eclesiástica mostrou-se mais importante e irresistível quando a igreja começou a ser seriamente questionada pelo mundo fora das suas portas.
A curva de secularização da sociedade começou a alçar-se nos séculos XVIII e XIX, mas seu desenho ficou nítido e seu trajeto completo somente no século XX. E precisamente quando o mundo começou a duvidar apaixonadamente de tudo que a igreja considerava certo e importante, o mecanismo de reforço da experiência eclesiástica mostrou-se mais lubrificado e eficaz.
Você podia passar uma semana difícil entre gente incrédula que discordava estrepitosamente de todas as suas escolhas, renúncias e prioridades, mas o domingo estava ali para reacender a sua fé. Semanalmente a igreja se mostrava pronta a exercer a sua função de máquina de reforçar as suas crenças, restaurando desse modo o seu senso de identidade (e com isso a sua motivação para continuar).
A experiência eclesiástica nesse período deixou de ter muito a ver com o conteúdo da fé e passou a concentrar-se na premiação da participação. A reunião de adoração teve de se tornar muito diferente, uma experiência muito mais satisfatória em termos sensoriais, emocionais e sociais do que tinha sido por mil anos; não devido a qualquer compromisso com a ortodoxia, mas de modo a maximizar os mecanismos de reforço inerentes à participação na instituição.
Todos se reuniam, se abraçavam, cantavam canções doces e pungentes, choravam juntos a clara incompreensão do mundo e davam tapinhas nas costas uns dos outros por resistirem bravamente às tentações da liberdade. Confetes eram jogados por todos sobre todos, as próximas datas e metas de venda eram reforçadas e todos partiam para a semana no deserto com um senso de pertença revigorado.
Você saía dali inabalável, imbatível,unstoppable, inteiramente pronto para resistir ao impacto de alguém que discordasse de você. E saía também ignorante de que encontrar alguém que discorda de você pode ser a coisa mais saudável, apaixonante e curativa que pode acontecer a qualquer um.
O mundo está bastante secular para que a maioria das pessoas concorde comigo que ninguém deveria ter de viver desse modo: manipulado por recompensas que você também oferece a outros na mesma condição e que por sua vez servem também para manipulá-los; aterrorizado diante da independência de quem discorda de você porque simplesmente existindo ela coloca em risco o seu sentimento de identidade.
Mas no momento em que a curva da secularização estava completa e parecia que se aproximava o dia em que todos caminharíamos de modo consciente e responsável por esta terra, sem a necessidade de mecanismos concorrentes de validação contínua, entrou em cena a internet – e quando a internet ficou pronta completava-se também o processo de igrejização da sociedade.
Em sua presente versão “social” a internet promove a igrejização da experiência com uma eficácia que a própria igreja não seria capaz de sonhar. Os velhos mecanismos de validação e de reforço encontraram terreno perfeito para se instalar e multiplicar: primeiro no salão árido dos blogs, dos powerpoints e das mensagens encaminhadas de e-mail, mas mais recentemente nas camas confortáveis do twitter e do facebook.
Nos velhos tempos as pessoas tinham de esperar o domingo para a sua sessão semanal de reforço e premiação; hoje o reforço é dispensado diretamente na veia, em modo streaming/transmissão contínua.
Enfim: a internet permite que você conviva sem pausa e sem interferência com a opinião e com a aprovação de gente que você escolheu a dedo porque pensa como você. 24 horas por dia. 7 dias por semana. Tolerância zero.
Aquele tiozinho que você adicionou distraidamente ou resignadamente no facebook: quando ele ousar manchar o seu mural com uma mensagem cujo teor político-filosófico-teológico-estético-musical-desportivo-sexual que você não aprova, o que resta fazer? Tratar de excluir o cara, ou pelo menos desinscrever-se do conteúdo dele, de modo a nunca mais ter de se submeter a uma opinião diversa da sua. Não tenho conta no facebook, mas se tivesse eu faria a mesma coisa, especialmente porque as pessoas estão raramente certas: isto é, é irritantemente comum que discordem de mim.
O facebook é este mundo ideal em que você só precisa conversar com seus “amigos”, ganhando ao mesmo tempo o privilégio de que poucos reis efetivamente desfrutaram, o de poder calar todas as vozes dissidentes.
O paradoxo é que a experiência da internet “social” acaba nos incentivando a mergulhar cada vez mais doentiamente, de modo infantil mas também irresistível, em nós mesmos. Temos mais “contatos” do que nunca, mas a operação da coisa garante que terminaremos por consumir apenas a informação que reforça aquilo em que nós mesmo já cremos.
Para dizer de outro modo, a internet e sua onipresença tornou a experiência da igreja portátil, no sentido em que posso sentir a cada instante a companhia e a aprovação de gente que compartilha da minha visão de mundo. Meu mural do facebook é um espaço aparentemente rico, vivo e diversificado, e provê evidência inequívoca da quantidade de gente que me estima e que me aceita como sou – mas trata-se de um espaço criado, desenvolvido e mantido de modo a permanecer livre de verdadeira discussão e de pensamentos discordantes. Você parece estar ouvindo uma infinidade de vozes, mas com 900 amigos falando sem trégua no seu mural você está apenas galvanizando aquilo em que você acredita: está ouvindo apenas a sua própria voz.
E já que você recompensa os outros do mesmo modo que eles recompensam você, a tendência é que a opinião de vocês fique cada vez mais polarizada em relação ao mundo lá fora. Não faz diferença se você é cristão ou ateu, hetero ou gay, de direita ou de esquerda: a internet social vai prover o senso de identidade e de ultraje de que você precisa para poder ignorar ou vencer a ameaça dos seus antagonistas.
Precisamente como o cristão que saía do culto de domingo com o seu senso de identidade/alienação fortalecido, o facebook, o twitter e seus amigos provém esse pano de fundo que nos permite atravessar intocados a inconveniente experiência do mundo real — trabalho, ônibus, metrô, calçada, restaurante, táxi, ricos e pobres, nordestinos e yuppies, comunistas e empresários, mendigos e boçais, gente protestante ou de candomblé. Caminhamos inabaláveis em meio a um oceano de desconhecidos que não nos compreenderiam e que não queremos compreender, porque trazemos a nossa igreja dentro de nós. Fechados cada um no seu mundo, celular em punho, estamos para todos os efeitos inteiramente livres de interações embaraçosas e não-antecipadas com gente que não escolhemos explicitamente aprovar.
Ao mesmo tempo, não é preciso ponderar muito para entender que gastamos cada vez menos tempo com amigos de carne e osso. É quase covardia recorrer ao ibope, mas as pesquisas concordam com o óbvio: que gastamos menos tempo com conversas e encontros informais do que fazíamos há dez, vinte anos. Nunca gastou-se tanto tempo com entretenimento, exercício e transporte e tão pouco com festas, bares, jogos, peladas, passeios, saraus, luaus, bailes, banquetes, noites de São João, rodas de samba. Piqueniques, alguém lembra do último? Receber amigos em casa, essas coisas do século XIII.
Qual foi a última vez que um amigo de carne e osso apresentou você a uma pessoa de carne e osso?
Pelo menos, no tempo da supremacia da igreja, o corpo-a-corpo sem confortos do mundo real nos forçava a enfrentar uma maior diversidade de valores, interesses e de opiniões. No universo estendido do trabalho, da escola ou da vizinhança, e apesar de toda a nossa cautela, amigos se impunham e nos conquistavam mesmo que não quiséssemos. Mesmo quando, absurdamente, pensavam e agiam como jamais faríamos nós mesmos.
Quem perde com essa ausência de interação é você, meu velho, sou eu. Tendemos todos ao circular, tendemos todos à esterilidade, e nossos círculos de confirmação nos fazem menores em vez de nos fazer crescer.
Se queremos um dia chegar a experimentar o social – isto é, chegar a ver o mundo como de fora de nós mesmos e ver a nós mesmos como somos, – nossa única esperança é encontrar pelo menos uma pessoa que discorde espetacularmente de nós... e que ainda se digne a ser visto na nossa companhia com alguma cumplicidade e orgulho. Somos sem qualquer dúvida um traste, mas pode quem sabe nos redimir um amigo insuportável. Ele será talvez comunista se você for de direita ou homofóbico se você for gay, mas faz parte do milagre. Basta que seja alguém que temos de atender de madrugada, alguém que ouse sentar no seu lugar, alguém que te conheça bem demais e que não caia nas suas armadilhas.
Essa ameaça de redenção e de autoconhecimento nos espreita fora do nosso círculo: não é à toa que mantenhamos travas em todas as portas.
http://forjauniversal.com/2013/a-igrejizacao-da-sociedade/
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